terça-feira, 24 de outubro de 2023

 __Vem Joana, vem ajudar o papai a abrir a lona pra colocar o arroz pra secar. O caminhão do Ceir já tá chegando!

Ia feliz, correndo.

Logo estariam todos aqueles grãos marrons, fininhos em cima daquela lona que tomava conta de todo pasto acima do alpendre.

Ajudava meu pai com toda a alegria que uma criança podia ofertar.

Daqui a pouco poderia caminhar sobre os grãos fazendo trilhas e trilhas, caminhos e mais caminhos sem fim.

Durante alguns dias essa era minha diversão,

percorrer os caminhos dos pássaros por sobre a lona amarela,

era a forma que encontrava para estar tão próximos deles, e eles tão próximos a mim, ali poderia ser mais rápida que eles. E eu era, e os espantavam,

corre, corre, voa, anda, voa, aqui é meu lugar, só eu posso caminhar.

O dia em que vocês me levarem pra voar eu os deixarei aqui pisar.


E passava o dia todo ali, correndo atrás dos pássaros que insistiam em caminhar sobre meu solo.

Eram os dias que estar com meu avô no pasto não tinha graça.

Nada me tirava dali. Só a minha mãe e a comida da minha avó.

__Seu avô não tem juízo mesmo! Joana pra dentro! Anda! Vai acabar ficando doente. O sol tá quente. Anda!

Na sua próxima ida a cidade meu avô comprou um chapéu pra mim. Agora minha mãe não tinha mais essa desculpa.

E eu corria, corria, andava.

Saí passarinho. Aqui é meu lugar! O dia que me levar pro céu e me ensinar a voar, então eu deixarei, vocês aqui pousar. Xô passarinho!


Aos domingos íamos a casa da mãe de minha mãe num vilarejo próximo. Algumas vezes íamos a cavalo, outras de carona no caminhão de leite do Ceir ou até mesmo a pé. Não gostava de ir.

Eram muitas pessoas conversando, vozes agudas de minhas tias.

Meu pai sempre rodeado de homens e eu nem podia ficar perto. Minha avó sempre reclamava de tudo, de todos, falando da prima que estava muito custosa, da outra que tinha ficado grávida...

E depois de muito lero lero, íamos a missa.

O sino era o sinal, estava pra começar. E ao soar do décimo a gente subia. Quanta gente! As escadarias da igreja eram lindas, ficava maravilhada com as pedrinhas que brilhavam com o sol, as vidraças todas com desenhos contando a vida de Jesus.

Realmente estava em um lugar sagrado, a casa de Deus.

Como que Deus sendo apenas um, tem tantas casas?

As paredes brilhavam tanto!

Só não gostava das pedrinhas, elas machucavam. Aquele tanto de gente me apertando. Eu simplesmente repugnava a situação.

__Como ela cresceu, está tão linda. É muda? Não fala?

__Joana é assim, calada. Um bichinho do mato.

__Tem de levar ela no médico. A filha da Constantina era assim quando criança.

__E a menina ainda está dando trabalho pra mãe? Coitada.

__Que nada comadre! Você não soube? A filha da Constantina morreu semana passada! Enfim deu descanso pra mãe. Não vê ela lá na frente. Ali ao lado do Joaquim?

__Mas ela não está de preto? A família sempre veste preto quando morre alguém!

__Pois é, mas a morte da filha foi um descanso à pobre. Todos agradeceram.

__É, e o filho do João Pedro tá ficando assim também. Ouve vozes. Corre pelo pasto. Grita. Foi assim, é sempre assim, eles saem pra estudar, voltam pra fazenda e ficam loucos. Deus me livre.

Será que eu iria ficar louca também? Pensava. Mas eu não tinha nada o que conversar com aquela gente.

__Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...

__Amém!

__Responde amém Joana! Pra Deus te escutar e saber que está aqui.

__Amém.

__Cordeiros de Deus que tirai os pecados do mundo!

__Amém!

Como será que pequenas ovelhas iriam tirar todos os pecados do mundo? Será que elas na verdade eram cavalos de algum valente semelhante a São Jorge? Só podia ser. Cavalos estranhos. Deveriam ser anões os guerreiros, ao invés de gigantes como São Jorge. Não conseguia imaginar como que simples carneiros conseguiriam tirar todo o pecado do mundo.


(Daiane Acosta. Parte do livro Joana...ana que anda)


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