sábado, 6 de março de 2021

 

As badaladas do sino era o sinal que estava para começar, e as poucas braças, para meus pequeninos pés, ficavam a uma distancia que cansava só de pensar. Estrada subida de terra batida, chão com poeira vermelha. Durante o dia a terra marcava os rastros de pássaros, trieiros de gado, cavalos, bicicletas, poucos automóveis e de todos os demais que por ali passavam; a paisagem era colorida com céu azul, sendo possível avistar as margens com canteiros cravejados de flores coloridas, e diversos arvoredos, capim e trilhos de formigueiro. Durante a noite a pouca eletricidade criava submundos escuros de penumbra amarelada, lugar em que as conversas entre vizinhos criavam realidades dentro da imaginação de criança ouvindo os burburinhos e os pés que subiam em direção a escadaria. Parados em frente a porta de entrada estava um grupo de pessoas segurando as velas e organizando a todos para a procissão. E por alguns momentos não se ouvia as maledicências e reclamações cotidianas, as cabeças baixas rezavam, e vozes cantavam orações aos anjos e clamores pelo amor de Maria. Acreditando que alguém vindo dos céus poderia curar nossas dores, eu criança descalça na procissão, juntava todas as minhas forças e cantava na esperança que realmente alguém viesse nos ajudar: em silencio pedia para ajudar a Carmelinda a sorrir, ajudar o Sebastião a curar as feridas da perna, a Carmem a emagrecer, ajudar a tia a ter comida em casa, ajudar meu pai a ficar calmo, ajudar minha mãe a não chorar mais, e ajudar as gentes todas que precisavam sair de tanta miséria e sofrimento. Percebia no coração daquela gente tantos espinhos cravados, sangrando que nem o Cristo na cruz, o mesmo Cristo que via pendurado no teto da igreja, quando o padre dizia "elevem os olhos aos céus"; Todos ali me aparecia aos olhos cheios de desespero, e quando olhava para o lado ouvia muitos suspiros com falta de ar. 

A cada encontro, a disputa era para ver quem contava mais dificuldades e problemas. Às vezes dava vontade de rir daquilo tudo, e muitas vezes eu ria mesmo, e rapidamente minha Mãe me cutucava "respeite, pára de rir". Observava minunciosamente às ações do padre Guido, e de todos ali,  e desde o dia em que ouvi as histórias dele, caindo numa fossa de cocô, fugindo de não sei quem, nunca mais consegui assistir a missa do mesmo jeito. Até ele, que estava tão perto de Deus, era um pecador, será que mesmo assim Deus nos ouviria? Lembro que no momento da comunhão era difícil compreender o quão infinito era o corpo de Cristo...sempre arrancavam um pedacinho dele pra gente comer, e toda semana apareciam mais pedaços. Direcionava meus olhos para o teto novamente, para o corpo de Cristo sangrando, e pedia perdão, perdão por "comer" um pedaço de seu corpo, e pensava, por quê? por quê preciso comer um pedaço do corpo de alguém, do filho de Deus, para me salvar? Provável seja por isso que não podemos mastigar a hóstia, apenas engolir, assim, com certeza, Cristo sofre menos! Queria chamar a todos, e implorar por misericórdia, olhem, Cristo chora e sofre sangrando na cruz! e, é claro, que todo esse diálogo acontecia apenas na minha mente, uma vez que minha mãe, e a professora de catequese, já haviam ensinado que não se questiona os desígnios de Deus, do Papa e do Padre. 

Restava a mim pedir por perdão. Perdão por precisar comer a carne de alguém para salvar a minha alma, perdão por tanto, e perdão também por rir toda vez que rezava "Ave Maria, cheia de graça, o senhor é convosco";  Era tão engraçado, acho que Santa Maria me entendia, afinal ela era cheia de graça, deve ser isso, Maria era cheia de graça e quando a gente rezava pra ela nosso coração também enchia de graça, e a gente ria, e isso fazia Cristo sorrir também e assim a sua dor diminuía de ficar tanto tempo ali pendurado, e tudo isso para tirar nossos pecados..."peraí, não seria mais fácil a gente parar de pecar para tirar Cristo dali, tinha alguém sofrendo para nos salvar!?"

A igreja que fui batizada tinha na entrada uma escada com duas rampas: uma a direita e outra a esquerda. No teto um globo com Nossa Senhora do Rosário protegendo o planeta. As paredes da igreja  brilhavam, o som das músicas e rezas ecoavam bonito, e parecia que aquele lugar era tão infinito quanto o céu; diziam que ali era um pedacinho da casa do Pai, nosso Deus. E o que eu queria mesmo era tirar Jesus de cima daquele teto,  crucificado, e ele sofria e eu sofria junto com ele. Enquanto o padre rezava a missa eu buscava encontrar uma maneira para pegar as chaves da porta de madeira, subir as escadas e chegar no teto para tirar Cristo de lá, um dia eu ia conseguir e ali dentro da igreja fiz uma promessa para Cristo, que eu iria tirar ele de lá.  

E ao soar do décimo sino, a gente subia: eu, minhas primas, tias, minha mãe, irmã, meu pai, avó e tios.  Quanta gente! As escadarias da igreja eram lindas, e sempre a esperança de que ao sair conseguiríamos realmente ser salvos de todas as aflições, lágrimas, doenças e dores. Eu ficava maravilhada com as pedrinhas brilhando com o sol nas manhãs de domingo, todas as vidraças do lado direito que ficava no leste resplandecia os desenhos e o colorido projetava a luz brilhando os desenhos das passagens de Jesus vivo, e eram chuvas de luzes, reflexos que tocavam e coloriam o chão; e aos poucos aquecia aquelas paredes geladas, e as pessoas agora pareciam mais felizes.  Realmente me sentia em um lugar sagrado, a casa de Deus.

E pensava, se a igreja era a casa de Deus e elas estavam no mundo inteiro,  e Deus sendo apenas um, bem que ele podia repartir algumas de suas casas com seus filhos. Muitos dos meus primos, por exemplo, não tinham casa própria e ficavam mudando de fazenda a fazenda.

 E as paredes brilhavam tanto! Eu só não gostava de encostar nas pedrinhas pontiagudas, elas machucavam minhas mãos. Acho que Deus não gostava de ver as pessoas encostando-se às suas paredes, e por isso ele colocou tantas pedrinhas afiadas, mas era bonito de se ver de longe.

__Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
__Amém!
__Responde amém, filha! Pra Deus te escutar e saber que está aqui.
__Amém.
__Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo!
__Dai-nos a paz! 
__Amém!

Como será que pequenas ovelhas iriam tirar todos os pecados do mundo? Será que elas na verdade eram cavalos de algum valente, semelhante a São Jorge, que lutava na lua contra o dragão? Só podia ser! Cavalos estranhos esses! E talvez, se não fossem ovelhas, que são tão mansas e lentas, essa luta já teria acabado!  Realmente não conseguia imaginar como que simples carneiros, iguais as que via no pasto do Padrinho Sebastião,  conseguiriam tirar todo o pecado do mundo! Queria conversar com São Jorge, pedir ajuda pra ele, contar a ele que nossas ovelhas não estavam conseguindo nos salvar, e Cristo continuava ali sofrendo, preso na cruz, e toda semana tanta gente comendo sua carne, bebendo de seu sangue e nada acontecendo no mundo para a salvação, e será que ela algum dia chegaria? E quando percebia estava rezando para São Jorge guerreiro, pra ele sair rápido daquela escuridão do céu, largar de ficar lá sozinho, lutando na lua para não deixar o dragão invadir a terra. "São Jorge, deixa o dragão aí sozinho, até ele chegar aqui, talvez o senhor já conseguiu nos ajudar! 

__Amém!

(2009)


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